folia em dia de chuva

Friday, August 31, 2007

as flores do caminho



Quando decidia ir, precisava sempre que fosse logo. De imediato. Voando. E ainda assim lhe parecia sempre demasiado demorada a chegada. Quase sofrida, não fosse o iminente alívio de retornar ao seu eterno lugar. No céu ainda, deixava que a imaginação voasse por sobre as nuvens: imaginava seus dias em terra firme, e era capaz de construir imensas listas mentais de todas as coisas que queria fazer, as pessoas que queria rever, os abraços que queria dar e até as lágrimas que queria derramar – tudo isso antes de já ir embora outra vez. Sabia que eram listas impossíveis de serem cumpridas – nem mesmo se o tempo fosse espichado ao máximo – mas só o prazer de construí-las já era um pouco como concretizá-las.


No breve intervalo entre a chegada e a nova partida, tudo um pouco em suspenso ficava: a vida diária suspensa para que a vida pudesse ser vivido na extremo das sensações, ali, no limite de tudo. Até a quase exaustão. Não se importava em gastar as energias todas e ainda abria mão de quase toda a reserva que tinha para esses casos especiais. Deixava no tanque apenas o suficiente para ainda poder respirar – porque até mesmo o ar de lá era diferente. Lhe fazia bem. Fazia com que se sentisse bonita outra vez. Por isso de tempos em tempos era preciso respirar fundo.


Ainda que não quisesse. Ainda que fisicamente doesse. Ainda que deixar pessoas e lugares para trás tivesse, involuntariamente, quase se tornado sua especialidade. Ainda assim, chegava um momento em que era preciso partir outra vez. Momento em que toda a intensidade que havia invadido a vida iria de pouquinhos se dissipando – na busca por outras vidas improdutivas a serem invadidas. E quando chegava então o tal momento do regresso, o melhor mesmo era apoiar-se nos ombros do silêncio (afinal os abraços mais silenciosos costumam também ser os mais doloridos). Ou quem sabe na singeleza de um “até amanhã”, irônico, hipócrita ou profundamente verdadeiro porque exprimia até a vontade que não podia ser dita. Em meio a isso tudo, era preciso partir aos poucos. Era preciso partir por terra, o mais lenta e cuidadosamente possível. Era preciso partir prestando toda a atenção no caminho – em cada um de seus detalhes – marcando cada um de seus quilômetros com uma flor, que era pra depois sempre saber como voltar.

Saturday, August 18, 2007

no varal



Por um momento queria nada sentir.
Queria um sopro de vazio nesse turbilhão que não lhe deixava quieta.
Por um momento queria poder ver o pôr do sol sem pensar nas milhares de obrigações que estava deixando de cumprir – prorrogando tudo como se o tempo fosse elástico. E como se não soubesse que no final ia ficar, de novo, tudo pro final.

Por hoje só queria estar numa bolha. A ilusão da distância. A suspensão dos acontecimentos. As férias de si mesma. De sua própria minha vida. Da vida que havia criado pra preencher sua vida.
Por hoje só o tédio lhe bastaria, lhe preencheria como nenhum outro sentimento seria capaz. Nada ter que fazer. Dia dos pais sem ser dia dos pais. Páscoa sem ser páscoa. Carnaval sem ser carnaval.
Alheia a tudo, alhures.

Longe, longe. É onde hoje queria estar.
Mas não. A vida insistia em passar por cima. Insistia em mantê-la ali. Insistia em lhe fazer lembrar de prazos, de número de páginas, de livros, resenhas, relatórios, reuniões, projetos... palavras tão sérias essas. Tão chatas.

Queria poder lembrar-se apenas dos sorrisos, dos encontros ao acaso, do perambular (e poderia existir palavra mais gostosa??), de dar risadas de um amigo fantasiado de superman num sábado de tarde e depois tomar sorvete de flocos e tirar fotos divertidas. Quem sabe quisesse até alguma obrigação. A obrigação de ver o mundo, de apreciá-lo. E, porque não, a obrigação da calma, do respiro, do ritmo não imposto. Era isso. O que queria mesmo era poder pendurar a vida no varal pra só recolher depois de um dia de muito sol e vento.

Saturday, August 11, 2007

andar ao mar


Tinha os pés n’água e gostava de tê-los. N’água sentia-se em casa. De volta. A água de um frio que arrepia a alma e refresca o corpo quente. A água de querer estar submerso – sentir o sal na boca e os pés n’areia molhada. Água de lavar e levar tudo. Pro-fundo.Tinha os pés n’água e estava de volta.


Por muitos anos tinha estado fora. Longe de seu povo, longe da terra que lhe havia ensinado a ter os pés no chão. A caminhar. A cair. E, principalmente, a tentar levantar. Durante os últimos 20 anos tinha tentado aprender a dar seus passos por outros lados, outras paragens. Por vezes achava que caminhar era caminhar em qualquer lugar do mundo, em outros dias sentia-se como se tivesse desaprendido por completo o simples colocar um pé na frente do outro. Tinham sido 20 anos de passos inconstantes, tropeções, pisadas firmes, escorregadas, corridas, pernas bambas e períodos de ficar de pernas cruzadas. 20 anos como se estivesse caminhando na areia – mas sem o mar. 20 anos de caminhada sem um horizonte para olhar.


Voltava agora mais porque tinha que voltar que exatamente por vontade de rever o passado que ainda tentava deixar pra trás. Voltava porque já não havia opção. Voltava porque numa noite chuvosa seu melhor amigo de toda a vida tinha chocado o carro contra um muro e agora era preciso estar perto para poder se despedir. E se desculpar pelos 20 anos de caminhadas distantes.


Logo que chegara nem pôde sentir como era estar de volta. A dor da ausência (ausência que começara havia 20 anos mas que agora se tornara irremediável) impedia tudo – até mesmo as lágrimas. Durante os primeiros dias de negro fora uma pessoa distante, ausente para o resto do mundo, completamente mergulhada em si mesmo. Tratava de tentar suportar a cratera que se abrira em seu peito e que engolia todas as outras coisas. Não conseguia. Foi ao mar ver se os pés n’água lhe davam alguma firmeza. Se lhe preenchia – de areia que fosse – não só os espaços entre os dedos do pé, mas também o vazio d’alma.


Pois sim. Estando n’água voltava a algum lugar. Um lugar onde talvez nunca tivesse estado, mas que era o lugar de onde mais sentia saudades. O seu lugar no mundo. Voltava ao mar para voltar a si, mas também para inundar-se de outras sensações. Sentia frio e isso o fazia sentir bem. Em sua cabeça, um filme com os melhores e os piores momentos junto de seu melhor amigo. À medida que passavam, as cenas eram levadas pelas ondas até que descansassem em algum lugar no fundo do mar. Já só a imensidão poderia suportá-las. Ele não.


Voltou à areia. Voltou a estar só. Ele e o frio do corpo. Em sua cabeça escutava um solo de saxofone. E em seu peito ecoava o som do nada. Estava sozinho. E dessa vez para sempre. E sabendo disso, assim só e só assim, decidiu seguir caminhando. Tendo ou não caminho. Tendo ou não destino. Tendo ou não o mar e o horizonte – agora seus únicos amigos. Enquanto estivesse vivo seguiria caminhando – da maneira que essa mesma terra lhe havia ensinado – porque mais do que sentir-se bem, lhe importava mesmo era seguir sentindo. Até onde houvesse sentimento.